sexta-feira, 4 de novembro de 2016

61. J de jato


Jato

Não me recuso a escrever o poema que recuso
são os versos que não querem sequências
nem as palavras que não querem ser lançadas
como se jorrassem de uma ininterrupta fonte
desinspiradas, fragmentadas em minúsculas gotas.
Não, não me recuso a escrever o poema que recuso
porque não têm poesia as palavras em jatos.
Quando o luar me invade a janela
e um gato mia no telhado em frente,
sim eu faço um poema ao gato, ou à gata,
ou ao luar, ou simplesmente à janela.
Mas o que tu me pedes é que eu escreva palavras
e, a isso, não me recuso.
Apenas me recuso a escrever o poema que recuso.
Palavras ao gato, como um miado impercetível
palavras ao luar como se assim se iluminassem
palavras à janela, translúcidas,
palavras translúcidas,
como a cortina que não veda a luz do luar,
como que aventadas no éter.
Ainda se a noite fosse de luar...
E tu aí, à espera do meu poema
 (mas eu não me recuso
a escrevê-lo),
porque só me recuso a escrever o poema que recuso.
Pois sim, de amor, pois sim...
eu sei, tudo se resume ao amor,
mas o amor não são palavras. Ou antes, são,
quando as palavras são de amor e há luar.
Ah como é bom dizer-te que te amo
em palavras escritas em verso
e tu a lê-las num ímpeto, palavras em borbotão
amo-te, amo-te,
és uma flor, um jardim,
és uma estrela, uma constelação
amo-te, amo-te
és mel, uma colmeia
és doce, um açucareiro
amo-te, amo-te
palavras, palavras, palavras,
não! não me recuso a escrever um poema de amor
apenas porque me recuso a escrever o poema que recuso,
mas de amor, nunca me recuso...
como são lindas as manhãs de primavera
e tu és a primavera, as quatro estações
és um raio de luz na minha vida, um farol
amo-te, amo-te
amo o teu corpo de sereia, o cardume
os teus lábios de carmim, o arco-íris
os teus olhos de turmalina, a joalharia
o teu rosto de tangerina, o pomar
amo-te, amo-te
tu és cada uma das coisas e todas ao mesmo tempo
porque só tu me roubas as palavras e me obrigas
a escrever o poema que me recuso a escrever.


©Vítor Fernandes  3/11/2016

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

60. I de inventário



Declaração de amor

Gosto do cheiro da relva acabada de cortar e de dons Rodrigos.
Gosto de cerveja fresca tomada numa esplanada à beira-mar e de t-shirts pretas.
Gosto de sericaia adornada com ameixas de Elvas e do cheiro da terra depois da chuva.
Gosto da brisa do fim das tardes de Verão e de andar descalço numa batemilha.
Gosto de fotografar flores molhadas e viajar em primeira classe.
Gosto do anticiclone dos Açores e de navegar na internet.
Gosto de fazer amor à luz do dia e de banda desenhada.
Gosto de dançar foxtrot e de pássaros fora das gaiolas.
Gosto de rimar a palavra inconsistente com a dor de dente.
Gosto de ler Saramago, de ver Woody Allen e de ouvir Pat Metheny.
Gosto do cheiro que emana das lojas que moem café.
Gosto de TV HD, de cinema 3D, e do velho LP.
Gosto de mulheres nuas, de guarda-chuvas às riscas e de amendoeiras em flor.
Gosto de laranjas, de amoras, de ameixas e de sapatos de atacadores.
Gosto do Benfica, de fecho-éclair, de camisas aos quadrados e de alho francês.
Gosto de meias pretas, de mexilhão à marinheira e de vinho tinto.
Gosto de matemática e de azulejos do século XVII.
Gosto do som da balalaica, gosto de bicicletas e de canivetes suíços.
Gosto de pintar a acrílico e de filetes de pescada com abacaxi.
Gosto de pimentos, de orelha de porco, de canja de galinha e de polvo à lagareiro.
Gosto de esferográficas azuis, de rosas amarelas e de vinho verde branco.
Gosto de livres diretos, de gin tónico e de espetadas de lulas.
Gosto de havaianas, de jeans, de gravatas Dior, de lenços Hermès e de sopa de agrião.
Gosto de expressões latinas e dar os bons dias no elevador.
Gosto de futebol, de rendas de bilros, de cabelos curtos e de óculos graduados.
Gosto de gatos, gosto de queijo de ovelha e gosto de dormir no sofá.
Gosto de rock and roll, de badmington, de lápis de cor e de cortinas translúcidas.
Mas do que eu mais gosto é de ti! Gosto muito, muito de ti!

2010.05.06

sábado, 21 de novembro de 2015

59. H de Hoje



Hoje

Hoje foi dia de nevoeiros
a manhã estava fria e não havia Sol,
choviam gotículas que se não viam mas que me atravessavam o corpo
e entranhavam-se-me  na pele seca do prolongado verão

Hoje tu não vinhas e eu esperava-te
no banco frio de um jardim virada a norte...
só nevoeiro e a  pele seca fustigada pela manhã húmida.
Tu não vinhas

Hoje olhei e nada vi,
nada se vê onde nada há para ver

Hoje já não há mais verão para nos secar a pele
apenas as horas passam sob a gélida manhã...

o meu inverno está próximo



sexta-feira, 1 de maio de 2015

58. G de Gabardine




Gabardine de sombras

Chovem-te incógnitas na equação da vida
e os teus limites são irresolúveis indeterminações.
Nos nevoeiros disfuncionais do teu futuro
nenhuma assíntota tem o poder de te guiar.
Oscilas em névoas sinusoidais
e uma humidade periódica
desliza nas linhas da tua mão.
Como se imaginário fosse o teu futuro
ele é repleto de complexas tonalidades.
Matematicamente caminhas
combinando as probabilidades do inêxito.
Sobram-te multiplicativas regras
para que te não percas nas sucessões de lama.
Tendes para um imensurável infinito
e não divides por zero as tuas esperanças...
E nem as vindouras sombras se desenham geométricas
nem te proteges como se gabardina fosses
contra o dilúvio de absolutas incertezas.

©Vítor Fernandes
09/03/2015


terça-feira, 21 de abril de 2015

57. F de Fim de festa



Fim de festa

Já dormem as horas
de um dia que foi esperança
e já se apagam as luzes
nos balões da festa;
até as flores na jarra murcham.

Dormem corpos no relento da indiferença
e colocam de novo a cartola
os velhos charutos que se reacendem...
chupam-se as espinhas da cabeça
de um velho peixe salgado.

Gemem milhões
sem tostões em hospitais abarrotados,
morrem velhos nos corredores da desesperança
espirram milhões
de burlas constipados, cartolas,
em cobertas quentes (encobertos e quentes) de poder.

Falam de abril como se exista abril
em pluri-mentiras atiradas a tolos
como se papas fossem
e morrem sem papas outros tolos
que acreditam que existe abril.

Já não há armas como antigamente
nem há antigamente
mas ainda há liberdade para não se querer
o antigamente que é este presente.

Murcham na jarra as flores
e apagam-se as luzes da festa nos balões
e a liberdade teima em morrer no indiferente relento
nos corredores dos hospitais,
em frente à espinha salgada da cabeça do peixe.

Onde estão as armas de antigamente
se não na escrita do poeta?

E o homem da cartola
de charuto reaceso ri agora
no rosto da liberdade do poeta
e nega-lhe de novo abril.

Até um novo abril!

© Vítor Fernandes
21/04/2015

sábado, 11 de abril de 2015

56. E de Entardecer



Entardecer

Olho para a cor dos teus olhos
e espraio-me na beleza do entardecer,
és o postal ilustrado
que rouba ao mar o mel do fim do dia
e te inunda a tez de douradas horas.
O teu sorriso é leve e envolvente
como suaves ondas de brisa
 e só tu ofuscas com a tua majestade
a eterna beleza de um pôr-do-sol.

©Vítor Fernandes
10/02/2015

sexta-feira, 27 de março de 2015

55. D de Derreter (Ode ao Gin tónico)



Derreter
(Ode ao Gin tónico)

primeiro esfrego-te o interior
de naturais aromas
frescos
citrinos
e arrefeço-te o bojo
para que o embate
se mitigue.
Na conta e medida
te verto cristalino líquido
e te inundo de borbulhantes e amargas águas.
Uma folha de menta
será para ti a colónia de todos os dias.
E deixo-te a derreter em magotes
o gelo que te completa
quando me aperitivas as manhãs.

©Vítor Fernandes